Especial 70 anos de Stephen King
Domingo, 22 de Outubro
Sala de Cinema Walter da Silveira
Salvador – BA
O canadense David Cronenberg despontou nos anos 80 como um
dos maiores diretores não apenas do gênero fantástico como do cinema mundial em
todas as categorias. Invariavelmente encontram-se fãs do diretor entre
aficionados do horror, cinéfilos de blockbuster e acadêmicos da área. Não é um
feito comum agradar a tantos e em tantas vertentes; tampouco é corriqueiro agradar
e entreter ao grande público em sua principal vertente da ficção, o sci-fi e o
horror. Embora em suas principais obras Cronenberg caminhe por essas trilhas de
um gosto peculiar – caminhos que sofrem de longa data com o preconceito
cinematográfico – muito provavelmente sua fixação em personagens profundos e
seu realismo dramático tenham tornado suas obras acessíveis ao gosto comum como
poucos o conseguiram. Para além do “causar o horror” (no padrão oitentista
rechaçado pelas academias de cinema mundo afora, o que contribuiu para a
criação de toda uma cadeia de festivais de gênero à parte dos demais
festivais), Cronenberg propunha o “pensar o horror”. Seus filmes dialogam a
noção de corpo e a realidade químico-biológica humana em contraponto à
subjetividade, consciência e percepção do indivíduo como tal. São obras tanto
psicológicas quanto sociais, indo do micro ao macro em seus roteiros com muita
facilidade e realizando esse passeio científico com brilho cinematográfico,
pisando no terreno da arte sem fugir do contexto de entretenimento.
Em “Scanners – Sua Mente Pode Destruir” (1981), Cronenberg
deu um passo crucial à frente de seus filmes predecessores. Embora este possua
um tom abaixo da presença autoral que se observava em Calafrios (Shivers, 1975)
e Enraivecida na Fúria do Sexo (Rabid, 1977), sua temática única e uma forte
presença de tela do ator Michael Ironside tornou o filme um clássico
instantâneo do cinema fantástico e foi a porta de passagem para a fixação do
diretor nos poderes ocultos do cérebro. Esse novo interesse culminou em dois
filmes essenciais no ano de 1983: sua obra autoral máxima, Videodrome, e uma
das melhores adaptações já feitas da literatura de Stephen King para as telas:
A Hora da Zona Morta (The Dead Zone).
Em A Hora da Zona Morta acompanhamos o personagem Johnny
Smith, encarnado pelo ator Christopher Walken em um dos papéis mais relevantes
de sua carreira. Johnny é um introspectivo professor de literatura que, após
sofrer um acidente e passar cinco anos em coma, procura retomar sua vida em
meio a tudo que o tempo perdido causou. Para completar seus problemas, algo
ativou a zona morta de seu cérebro – aquela porcentagem de massa encefálica que
os humanos não utilizam – fazendo com que ele tenha visões assertivas de
passado, presente e futuro ao entrar em contato físico com as pessoas. Herbert
Lom, no personagem do doutor que faz o tratamento de Johnny durante e após seu
coma, afirma em certo momento não saber se estão lidando com “algo muito novo
ou algo muito antigo”. E assim segue a história de Stephen King, entre ciência
e ocultismo, sob um olhar muito intimista do personagem e seus conflitos
morais, enquanto tenta ajudar os mais próximos com seus poderes de
clarividência.
Perpassando três subplots ao longo de seus 102 minutos de
projeção – O caso da investigação do assassino, o caso do time de hockey e o
caso da campanha presidencial – a história culmina no ápice do próprio
personagem, ao confrontar sua antítese de moralidade e introspecção no
candidato Greg Stillson, interpretado de forma não menos brilhante por Martin
Sheen. Essa dualidade foi planejada por Stephen King, que, em sua paixão por
lidar com a infância dos personagens, apresenta um interessante epílogo
prevendo os rumos de Johnny e Stillson muito antes deles se tornarem herói e
vilão. Embora essa sequência não faça parte do filme, fica explícito que o
poder de concisão do roteirista Jeffrey Boam acertou o alvo em seu tom e
cadência, enfocando os momentos mais dramáticos e conferindo o ritmo de
unicidade necessário à adaptação de uma obra literária longa e fragmentada –
além de compactuar com um estilo mais apropriado à direção de Cronenberg, sem
deixar de abordar os principais conceitos e tramas exploradas por King na
história.
O filme é, principalmente, o drama poético de um homem à luz
do inexplicável. Nenhuma definição além dessa pode explicar o quanto o filme,
ainda hoje, funciona bem. Existe nele “algo muito novo ou algo muito antigo”
que o torna atemporal.
Como um destaque à parte, a bela abertura é uma das mais
memoráveis dos anos 80. Ela remete, junto à trilha sonora composta por Michael
Kamen e às imagens do cenário idílico canadense, principalmente à fusão de
gêneros própria da obra – pois se sobrepõe a tudo, pouco a pouco, a estética de
um sci-fi moderno, deslumbrante e assustador, conforme entrevemos o title
design de Wayne Fitzgerald. Além de ser um dos melhores designers do cinema
(ainda mais prolífico nessa área do que o mestre Saul Bass), ele atinge a
jugular com os créditos iniciais de a Hora da Zona Morta: é um festim para os
olhos, o laço do presente que é o filme como um todo.
Saul Mendez Filho para o Gore Bahia, 11/08/2017