Além dos castelos derrocados, dos mosteiros tenebrosos e dos
cemitérios visitados por fantasmas, o que acomuna os principais romances
góticos é a junção do horror aos elementos embrionários da ficção científica:
em “O médico e o monstro” de Robert Louis Stevenson, temos uma figura que se
tornaria típica dos clássicos SciFi,
isto é, o cientista que utiliza a si mesmo como cobaia para suas experiências
de laboratório; no “Frankenstein” de Mary Shelley, mais importante que o
protagonista, outro médico ensandecido, é o resultado de suas experiências, uma
criatura que foge do controle, que se revolta contra o próprio criador,
prenunciando o hoje tão caro mito do ciborgue; e, por último, há o Van Helsing,
professor universitário experto em ocultismo, que utiliza-se tanto do
sobrenatural como da ciência para derrotar seu inimigo, o Drácula, no célebre
romance homônimo de Bram Stoker.
“O Planeta dos Vampiros” (Terrore nello Spazio, 1965), de Mario Bava, se insere justamente no
limiar entre o horror e a ficção científica, na conjunção entre estes dois
gêneros: até mesmo o diretor nunca se referiu a este como sendo um mero SciFi, mas, sim, como um filme
fantástico de ciência e terror.
Após “A Maldição do Demônio” (La maschera del demonio, 1960), segundo terror gótico italiano -
precedido exclusivamente por “Os Vampiros” (I
vampiri, 1957) de Riccardo Freda - Bava deu continuidade às incursões no
mundo do macabro, dirigindo películas que se tornariam seminais para inúmeros
subgêneros cinematográficos, haja exemplo de “Olhos Diabólicos” (La Ragazza che Sapeva Troppo, 1963), que
teria inaugurado o spaghetti thriller
- mais conhecido como giallo - e de
“Seis Mulheres para o Assassino” (Sei
donne per l’assassino, 1964), precursor dos filmes slasher, cuja herança teria feito maior sucesso na década de ’80 em
solo americano.
Quando em 1965 Mario Bava tem a chance de adaptar o conto
“Uma Noite de 21 Horas” de Renato Pastriniero, ele volta a fazer o lhe é
natural: inovar. De fato, apesar de “Caltiki, o Monstro Imortal” (Caltiki il mostro immortale, 1959) ser o
primeiro Spaghetti SciFi, “O Planeta
dos Vampiros” alcança o status de filme cult
por uma razão ainda mais nobre, pois trata-se da primeira ficção científica
gótica.
Aqui, elementos do romance gótico como os membros de uma
família amaldiçoada são substituídos por uma dúzia de astronautas
intergalácticos, vestidos com trajes espaciais em pele à la mode ao invés do típico figurino medieval; a sublime vastidão
de paisagens de recantos desconhecidos e inexplorados pela civilização alcança,
aqui, seu ápice, já que estamos num planeta inóspito, distante anos luzes do
sistema solar; o sentimento de morte, presença sutil mas constante nas páginas
de escritores como Poe e Le Fanu, reencarna-se não mais sob as formas usadas e
abusadas de um fantasma ou de outra entidade oculta, preferindo a estas um novo
topos da ficção científica, isto é, o
parasita alienígena.
Na pretensão de seguir a onda de sucessos internacionais como
“O Monstro do Ártico” (The Thing from
Another World, 1951) do Howard Hawks e de “Vampiros de Almas” (Invasion of the Body Snatchers, 1956) de
Don Siegel, a Italian International Film
de Fulvio Lucisano apostou um budget
ridículo de 200.000 dólares em Mario Bava - famoso, desde o princípio da
carreira, por conseguir extrair o melhor até mesmo das piores produções. Em
particular, é em “O Planeta dos Vampiros” que percebemos como a destreza do
diretor de Sanremo por trás das câmeras só não é maior que sua inventividade
para criar efeitos cênicos tão eficazes quanto extraordinários: já que a
técnica do matte painting era
inviável por ser cara demais, Bava corria atrás de glass shots – imagens coladas em vidros postos diante da lente – e
do efeito Schüfftan – um espelho posto transversalmente à câmera para
transformar as miniaturas em cenários gigantescos, artifício utilizado em
produções mais antigas como “Metropolis” (idem, 1927) de Fritz Lang ou “O
Mágico de Oz” (The Wizard of Oz,
1939) de Victor Flaming, entregando ao público imagens críveis de um planeta
distante - e não as de um pequeno estúdio de Cinecittà espartanamente decorado
por Giorgio Giovannini, mesmo decorador dos filmes de Federico Fellini. No
documentário “Mario Bava: Operazione Paura” (idem, 2004), o jornalista Luigi
Cozzi lembra como Bava teve que filmar uma polenta em ebulição dentro de uma
panela iluminada por luz vermelha, uma estratégia funcional para o inferno em
“Hércules no Centro da Terra” (Ercole al
centro della terra, 1961) e para o rio de magma em “O Planeta dos
Vampiros”. Como em “A Maldição do Demônio”, Bava teve que se virar e revirar
com a pobreza de elementos no set de filmagem, reaproveitando um mesmo cenário
para diversas cenas, mudando ângulos e iluminação, sublimando enormes
quantidades de gelo seco para introduzir a tão querida neblina, um must para qualquer produção gótica.
Involuntariamente ou não, a repetição de espaços e de
geometrias da cenografia coincidiu com a recorrência de gestos e situações do
roteiro, traduzindo em metáforas imagéticas o medo da homogeneidade do
pensamento e da aniquilação do espírito individual, um terror social projetado
nos americanos a partir da grande ameaça que era então a União Soviética - o
temível Unheimliche (o Estranho)
freudiano, percebido como um estado distópico esmagador e uniformizante.
Comparativos entre Planeta dos Vampiros e Alien, de Ridley Scott.
Em “O Planeta dos Vampiros”, dois navios interplanetários, durante uma viagem de exploração, recebem um sinal vindo de Aura, um planeta desconhecido e desabitado. A tripulação de ambos os navios, o Galliot e o Argos, durante a fase de aterrissagem, por conta de um problema gravitacional, desmaia – com exceção do comandante da Argos – para, em seguida, despertar num estado de violência hipnótica. Aquietados pelo capitão Markary, os demais membros da Argos seguem em direção à nave gêmea, a qual não teve a mesma sorte: a força misteriosa levou a equipe da Galliot a cometer um massacre suicida.
A partir daí, a direção de Mario Bava (limitada
exclusivamente do ponto de vista econômico) e o roteiro de Alberto Bevilacqua e
Callisto Cosulich (encurtado por motivos financeiros pela IIF), trabalham em
sincronia para pôr um acento macabro em tudo aquilo que é reincidente,
repetitivo: o sepultamento dos colegas da Galliot prenuncia o destino trágico
dos sobreviventes da Argos; o retorno, ou, melhor dizendo, o ressurgimento dos
mortos, permite ao diretor brincar com um suspense hitchcockiano, uma vez que o
público sabe algo terrível que os demais astronautas ainda irão descobrir; de
forma similar, a espaçonave advinda de outra galáxia, com o esqueleto de
alienígenas gigantescos modelado pelo próprio Carlo Rambaldi - como se fosse
uma relíquia parcialmente enterrada no desértico cemitério do planeta Aura - já
nos antecipa o terrível desfecho do filme. Novamente, retornemos ao espírito
gótico da obra: naves como castelos mal assombrados e personagens fadados à
derrota.
Longe de ser perfeito e ainda mais longe de ser um dos
melhores trabalhos do Bava, “O Planeta dos Vampiros” é um filme que foi
recentemente redescoberto e reavaliado por público e crítica. No dia de 19 de
Maio de 2016, a primeira e única ficção científica dirigida por Mario Bava foi
projetada em versão restaurada, em qualidade 4K, sob a curadoria de Nicolas
Winding Refn. Após a projeção, o diretor dinamarquês declarou que, finalmente,
sabemos de onde Ridley Scott e Dan O’Bannon encontraram inspiração para o filme
“Alien – O 8.° Passageiro” (Alien,
1979). Felizmente, as palavras não são de acusação, mas, sim, de admiração.
Dino Galeazzi
Sessão Cine Horror com o filme “Planeta dos Vampiros”, de Mario Bava.
Quando
Dia 21 de março, às 18h30, com entrada gratuita.
Dia 21 de março, às 18h30, com entrada gratuita.
Onde
Sala Walter da Silveira (subsolo da Biblioteca Pública dos Barris, n 27 – fone 3116-8124/3116-8120)
Sala Walter da Silveira (subsolo da Biblioteca Pública dos Barris, n 27 – fone 3116-8124/3116-8120)
Apoio: Fundação Cultural da Bahia, através da sua Diretoria de Audiovisual (DIMAS/FUNCEB); e Versátil Home Vídeo.